Tenho Tempo.

...Tenho tempo…
Tempo de mastigar a comida, saborear o copo de vinho e fumar um cancro que chega e abala de seguida. Tenho tempo de pensar, acreditar em Deus, acreditar ainda mais ao ver a penumbra que se avizinha. E castigar-me por ser um ingénuo de fé, mas só em tempos de dilúvio, porque quando o sol brilhar de novo vou ter tempo de dizer “Que se dane Deus, deuses, santos e anjos...” e outros quaisquer objectos de adulação que nada de bom os vi a fazer. Não limparam lágrimas, não varreram cinzas de corpos cremados, nem sequer fizeram o vento soprar para que nos chegasse a aragem suficiente de nos secar as lágrimas ou fazer desaparecer as cinzas de corpos cremados.

Tenho tempo de analisar cada aspecto da solidão, cada idiossincrasia de uma emoção que é mais condição humana do que outra qualquer condição, que vem, que fica, e que, por mais alheias vozes ilusórias que ouçamos, há de voltar sem nunca ter realmente partido. E o tempo deu-me a relíquia de saborear água, que sabe a água e não a “nada” como muita gente ousa afirmar. Nada sabe a nada, a não ser esta existência de mãos acorrentadas, pés atados, olhos tapados, boca amordaçada, ouvidos cortados, e pele rasgada em ferida que dói tanto que nos faz esquecer o que é dor, o que é frio ou calor…

Tenho tempo de me perder em na gramática, nos vocábulos, nas frases, nas letras… e tempo de me achar alguém, para brincar com elas, rabiscando-as num papel vazio ou produzindo um eco nos meus ouvidos onde gritam significados diversos, em outros tantos diversos sentidos, despistados do sentido que lhes dava. Tenho tempo de errar, errar de novo, e errar até me fartar, para fazer bem.

E parem de me dar alimento, aos olhos, aos ouvidos, à boca, que vem já mastigado, aquecido num micro-ondas de 800 W, que se acha capaz de esquentar qualquer coisa… quando me esfria mais o coração. Parem de me dar papa já pré-feita que me faz sentir coisa nenhuma, que me dá nada em troca a não ser a ilusão de que estou a receber tanto. Tudo mastigado em papa que me empapa o cérebro…amassando-o em vazio.

BASTA! Tenho tempo para contemplar a dor, para a sentir no seu auge, e para encontrar caminhos que me refugiem dela. Hoje tenho eu tempo de triturar, moer, espremer aquilo que até então faziam para mim, quando me filtravam alegria, sofrimento, nostalgia, excitação e prazer…  

BASTA. Não quero mais batido de coisa nenhuma, que cega tantos ninguéns, que acreditam fazer tanto quando não fazem, que acreditam ser tanto quando não são, que acreditam comer tanto quando realmente comem tanto… de tantos alimentos processados, que lhe dão apenas uma diarreia de existência, e assim que descarregam o autoclismo voltam a ser nada nem ninguém.

Tenho tempo de sentir. Sentir tudo. E é isso que eu quero. Fugir à automatização e ao ruído da maquinaria.

Façam-me sentir. Amor, raiva, dor, saudade… agora não me façam ver apenas seios que não posso tocar, lábios que não me deixam beijar… agora não me façam ouvir vozes que gritam comichão e outras que gritam atenção… agora não me façam sentir que não posso sentir nada, a não ser o vazio de uma existência moída e filtrada, feita para fugirmos àquilo que é a realidade. E a realidade é ter um aperto no coração, é ter lágrimas a escorrer a face, é submetermo-nos ao orgasmo, à fome, ao cansaço, ao luto, à noite escura, ao dia chuvoso…

Declaro aqui que me sujeito a todo o perigo, risco, consequência (chamem o que quiserem) que possa advir daquilo que é sentir isto de VIVER.

Tenho tempo.
                                                                                                                                                                                                        
                                                                                                                                                                                   Ricardo Queirós
                                                                                                         

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